quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Bê-a-bá de gênero

Sexo é uma coisa e gênero é outra. O uso correto desses dois conceitos, além de absolutamente fundamental na luta para o resgate dos direitos de pessoas transgêneras, pode poupar muito papo furado e discussões inúteis com setores altamente reacionários da sociedade. Não se trata de um preciosismo inútil, "coisa da Letícia" que é "metida" a intelectual...

A língua é o cárcere das crenças, valores e comportamentos humanos. Para as pessoas mudarem, é muito importante que a linguagem mude. Quando alguém se refere a gênero chamando-o de sexo, está naturalizando e confirmando como natural algo que é absolutamente artificial. E, por mais revolucionária que seja, apenas fazendo o jogo dos setores mais conservadores e reacionários da sociedade.
Sexo não é igual a gênero e não pode nem deve ser usado no lugar de gênero, sob pena dos fundamentalistas religiosos verem a todo momento confirmada a sua crença estafúrdia de que não existe gênero. De que só existe sexo, que o "ser homem" e o "ser mulher" já vêm embutidos no sexo e que, portanto, gênero não passa de uma “ideologia”, inventada pela "ditadura LGBT" para confrontar a vontade divina que fez questão de fazer o homem, homem e a mulher, mulher.

Acontece que sexo é uma coisa e gênero é outra. Essa foi, sem dúvida alguma, a grande sacada do feminismo da segunda onda. Apesar de parecer uma distinção tão óbvia hoje em dia, capaz de convencer os incrédulos e incautos com uma simples explanação, é preciso lembrar que o conceito de gênero não existia até meados da década de 1960, quando a historiadora e feminista norte-americana Joan Robinson propôs o seu uso, até então restrito à linguística geral, como uma categoria de análise histórica. Daí em diante, as coisas nunca mais foram tão naturais e tranquilas para os chamados "essencialistas de gênero" que acreditavam (e continuam acreditando) que sexo é igual a gênero e que, portanto, gênero é herdado biologicamente, junto com outras características do indivíduo.

Só o sexo é fisiológico e anatômico, fruto da herança biológica guardada no DNA de cada pessoa e que diz respeito exclusivamente ao aparelho reprodutivo das pessoas. Gênero é jurídico, é sociológico, é antropológico, é cultural, é político, é econômico, é histórico. Trata-se de um complexo mecanismo de diferenciação, hierarquização e controle de conduta das pessoas, que não tem nada de natural, exceto o fato de se valer do sexo biológico para ser arbitrariamente imposto aos indivíduos em função exclusivamente da sua genitália aparente, presente entre as pernas ao nascer.

Do ponto de vista do sexo, os indivíduos são classificados em machos e fêmeas, sendo chamado de macho o que apresenta um pênis ao nascer e de fêmea o que apresenta uma vagina. Devemos usar sexo quando nos referirmos ao órgão genital (característica genital primária), aos seios, pelos corporais, “pomo de Adão” (e outras características genitais secundárias) e às funções reprodutivas dos indivíduos, como ovulação, cópula e gestação.

Do ponto de vista do gênero, os indivíduos são classificados em homem e mulher, ou masculino e feminino. O indivíduo que nasce com um pênis, ou seja, macho, é automaticamente inscrito na categoria sociopolítico-cultural de homem, assim como o indivíduo que nasce fêmea, isto é com vagina, é automaticamente inscrito na categoria sociopolítico-cultural de mulher.

A hipótese implícita nessa inclusão arbitrária é que o órgão genital da pessoa determina “naturalmente” o que a pessoa vai ser nesse mundo, como se o comportamento humano estivesse contido no DNA, como é o caso de todos os outros animais. Mas o ser humano escapa inteiramente desse determinismo biológico, no momento em que, diferentemente de todos os outros animais que já nascem programadas para ser e agir de determinada forma, o ser humano está condenado a aprender a ser.

Assim, no caso dos seres humanos, muito ao contrário do que postulou Freud, sexo NÃO É destino. Não existe nenhuma relação direta entre ser macho e ser homem ou entre ser fêmea e ser mulher: tudo não passa de “aprendizado social”. Sem um exaustivo e contínuo “adestramento e controle” por parte da sociedade, nem o macho se torna e se mantém como homem, nem a fêmea se torna e se mantém como mulher.

Quando, por exemplo, um cristão fundamentalista ou uma feminista radical terf afirmam que não se pode mudar o sexo de uma pessoa ela não deixa de estar inteiramente correta, considerando-se inclusive o atual estágio de desenvolvimento da nossa ciência, que não permite mesmo alterar de forma tão radicalmente os dados biológicos da natureza relativos a sexo.

Contudo, as debatedoras trans que se apressam em refutar a argumentação dessas pessoas costumam se enrolar vergonhosamente, por também não reconhecerem a distinção entre sexo e gênero.

Se sexo não pode realmente ser mudado, gênero pode ser mudado a qualquer hora. Está correto que sexo é um dado estrutural da natureza, mas gênero não passa de uma convenção social que pode ser alterada a qualquer tempo.

Daí a importância de mantermos sempre uma clara diferenciação entre sexo e gênero nas nossas conversas. Daí a minha afirmação de que transexual não é uma palavra adequada para designar pessoas em conflito com sua identidade de gênero.

Não se altera o gênero “mexendo” no corpo e mexer no corpo é uma discussão que não devia nem ao menos ser colocada, pois o corpo é um território exclusivamente individual, onde só a própria pessoa pode decidir o que quer ou não fazer dele. Cabe exclusivamente a cada pessoa decidir se quer ter ou não um pênis ou se quer ter ou não seios. Essa, aliás, é uma verdade absoluta para quem tem dinheiro sobrando para modificar à vontade o próprio corpo, como a Cher ou o saudoso Michael Jackson.

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